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Dois contos do João Soldado

DOIS CONTOS DO JOÃO SOLDADO

Ia uma vez um soldado para casa com baixa; quando ao passar por uma ponte encontrou um pobre de pedir, que não tinha dinheiro para pagar a passagem e estava ali parado. Ora o soldado nunca tinha feito bem a ninguém; mas naquele instante teve pena do velhinho e carregou com ele às costas e passou a ponte. O soldado não pagou nada porque ia às costas do soldado. Logo que chegou ao outro lado, pôs o velho no chão, e ia despedir-se dele, quando o pobre lhe disse:

Camarada, peça alguma coisa, que o que eu quero é agradecer-lhe.

Ora o que lhe hei-de eu pedir?

Peça tudo o que quiser.

O soldado pediu: Que todas as vezes que disser: “Salta aqui à minha mochilinha!” nenhuma coisa deixe de obedecer à minha ordem. E que onde quer que eu assente ninguém me possa mandar levantar

O velho disse-lhe que estava concedido. Foi-se o soldado muito contente para casa e nunca mais trabalhou, e viveu bem, sem lhe faltar nada. Se queria pão, carne, vinho, dinheiro, dizia: “Salta aqui à minha mochilinha”, e tinha logo tudo o que era preciso. Veio o tempo e o soldado estava para morrer; os Diabos vieram logo para lhe levarem a alma, mas o soldado viu-os e gritou: “Saltem aqui já à minha mochilinha!”. Os Diabos não tiveram remédio senão obedecer; ele assim que os apanhou dentro da mochila mandou-a a casa do ferreiro para que lhe malhasse em cima até os deixar em estilhas. Por fim o soldado morreu, e como tinha passado sempre na má vida, foi parar ao Inferno. Os Diabos assim que o lá viram começaram a gritar:

Fecha portas e postigos, senão seremos aqui todos batidos.

E aferrolharam as portas, e o soldado não pôde entrar para lá; foi então bater ás portas do Céu. São Pedro assim que o viu, disse-lhe:

Vens enganado! Não entras cá. Não te lembras da má vida que levaste?

Responde-lhe o soldado:

Ó Senhor São Pedro! no Inferno não me quiseram. Eu agora para onde hei-de ir?

Arranja-te lá como puderes.

O soldado viu meia porta do Céu aberta, e pega no barrete e atira-o lá para dentro, e disse:

Ó Senhor São Pedro, deixe-me ir apanhar o barrete.

O soldado viu meia porta do Céu aberta, e pega no barrete e atira-o lá para dentro, e disse:

Ó Senhor São Pedro, deixe-me ir apanhar o barrete.

São Pedro deixou; mas o soldado assim que o viu dentro do portal, sentou-se logo na cadeira dele. São Pedro quis mandá-lo sair mas não pôde e foi dali à pressa queixar-se a Nosso Senhor, que lhe disse:

Deixa-o entrar Pedro, não tens outro remédio, porque assim lhe estava prometido.

E o soldado sempre ficou no Céu.

 BRAGA, Teófilo, (…), Contos tradicionais do Povo Português I, “O Soldado que foi para o Céu”, 228-229

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Havia um rapaz que foi a sarvir a pátria. Andou lá vinte e quatr’anos. Ò fim dos vinte e quatr’anos, só ganhou um pão e quatro vinténs. Incontrou Noss’Senhôr e o Senhôr Sã Pedro e diz Noss’Senhôr:- Ó João, tu dás-mos ma smola?- Calha bem! Andê vinte e quatr’anos a sarvir o rei e só ganhê quatro vinténs e um pão, e inda querês que vos dê?- Agarrou no pão e faze-o im três bocuados e dou um a cada Senhôr. Abalaram dali desparnados uns dos outros e tchegaram na outro sítio e incontraram-s’òtra vez.- É João, tens de mos dar outra smola!- Tamém, sois uns chatos. Andais-me só a pedir. Dou-l’outro outro bocuado.- Foram òtra vez cando s’incontraram:- João, dá-mos òtra vez!- Vá agora, já no tanho mai pra vos dar. Que querês que vos dê? No m’andar a pedir mai agora!- Mas o Senhôr tornou-l’aparecer:- Vá agora tens de me dar mai.- Dou-l’atão os quatro vinténs.- Só tinha quatro vnténs e um pão e inda mos tréram!- Dixe o Senhôr Sã Pedro prò Senhôr:- Atã, me devino Mestre, já tréstes ò Joã Soldado, e agora o que le dais? Dou-l’um bornal, e dixe-le:- Tu agora tens aqueste bornal, e tudo canto quejeres, hás-de le dezer: salt’aqui prò mê bornal. Abalaram dali e o Joã Soldado cando queria alguma cousa só le dezia:- Salt’aqui prò me bornal.- Ò depoi, vei um damonho a meter-se co ele. – Homa, no te metas comigo, êlha que saltas aqui prò mê bornal.- Saltou pr`bornal e levou-o de cima do bornal. O diabo abalou pró inferno a dar queixas òs mai damonhos e mandou um dos mai pecaninos:- Vai lá tu a ver s’o atentas.- Ai, vens lá tu, peste? Spera qu’ê já te coço: salt’aqui prò mê bornal! Saltou prò bornal e stafou-o lá e foi stafadinho prò inferno a dar queixas ò Luís Ciferes. –Agora vou ê lá, dix’ele. Começou atão a tratá-lo mal e dixe o Joã Soldado:- Salta prò mê bornal.- Saltou prò bornal e ali foi malhar e malhar. Foi prò inferno derreadinho. Dexeram-l’os outros:- Atã, vens dessa manêra?- Homa, ir lá todos que logo sabeis. Ir-m’aí a ver de ferrêros pra pôra-mos ferrolhos a todas as portas, que se lá vem, stafa aí tudo. O Joã Soldado, daí parti prò céu. Tchegou ò céu, e pediu ò Senhor Sã Pedro qu’o deixésse intrar:- Tu no podes intrar, proqu’aqui só entra quem tem as suas culpas pardoadas e tu inda no morrestes:- Homa, andei vinte quat’anos a sarvir o rei, só ganhei um pão e quatro vinténs, dei tudo, e inda no tenho intrada no céu? Tenho d’intrar. No entras, no entras. – Salta c´prò mê bornal. – Saltou pró bornal e feze-o andar a balhar às portas do céu. Apenas apanhou o Sã Pedro fora da cadêra, assantou-se nela. Dixe Sã Pedro pra Noss’Senhôr: – Atã, mê devino Mestre, trou-m’a cadêra, pra onde hê-d’ir? – No la dexéras trér! – Andei vinte quatr’anos a sarvir o rei, só ganhei um pão e quatro vinténs, tenho drêto à cadêra e ò céu- Noss’Senhôr dêxou-o lá fequér.

BUESCU, Maria Leonor Carvalhão, 1984, “Joã Soldado”, Monsanto- Etnografia e Linguagem, Editorial Presença, Lisboa, 142.

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